Em seu texto de estreia, o colaborador Renato Vieira faz uma reflexão sobre a essência dos personagens do RPG Vampiro: A Máscara
Recentemente fui convidado a jogar o RPG de mesa Vampiro: A Máscara, a quinta edição dele na verdade. Já tinha ouvido falar muito desse jogo. Houve um boom no final da década de 90, tudo que eu ouvia falar era de excelentes jogos, de eventos mundiais, de pessoas vestidas a caráter (hoje a gente chama isso de cosplay, será isso que teve suas origens ai? Vale uma pesquisa depois). Não tive a oportunidade de jogar naquela época, estava na faculdade e trabalhando muito, mas sempre ouvi boas coisas.

Obviamente aceitei o convite com muito entusiasmo e recebi do mestre a explicação de que era um jogo de terror pessoal, um mergulho na nossa psique, dos demônios que habitam em nossas almas. Acredito que RPG pode ser uma ótima ferramenta de catarse e de análise das nossas vontades ocultas, mas há sempre um risco em enveredar-se por essas searas de forma descuidada.
A primeira coisa que notei, e aparentemente fui o único, é que os clãs dos vampiros parecem ser inspirados em livros clássicos de terror. Foi impossível para mim não ver as semelhanças entre os Toreadores e “O Retrato de Dorian Grey”, dos Tremere e “Frankenstein”, dos LaSombra e “O Homem Sem Sombra”. Uma coisa que é comum a todas essas histórias é que elas lidam com uma perda da humanidade, seja pela perda da moral, ou talvez da identidade, de extrapolar os limites, ou simplesmente a sedução de abusar de algum poder. Essa perda da humanidade é uma mecânica central no jogo RPG Vampiro, ou, pelo menos, deveria ser.
Fiquei sabendo que a maioria das pessoas jogava o jogo na terceira edição como uma Liga da Justiça: turno da noite, e não há nada de errado com isso, apenas me parece que não é a proposta central do jogo nesta edição.

Me dispus, então, a analisar o que seria esse monstro: o Vampiro. Confesso que li apenas uns poucos livros de vampiros: Drácula, Carmilla e Entrevista com o Vampiro. E, lógico, vi alguns filmes no cinema e na TV. A princípio, me parece que o vampiro não é um monstro, apenas uma vítima das circunstâncias, nunca ninguém pede para ser transformado, alguns aceitam bem, outros nem tanto, mas todos parecem sofrer com a transformação. Mas isso é uma desculpa esfarrapada, ninguém nunca escolhe as próprias circunstâncias e o monstro é o que acaba muitas vezes por emergir no final, o vampirismo é como a têmpera da espada que quebra ou se enrijece no final do processo.
A pergunta que fica é o que está sendo liberado através desse processo e o porquê. Os vampiros clássicos são claramente predadores, eles enxergam a maioria das pessoas como gado ou, na melhor das hipóteses, como animais de estimação ou talvez troféus. Não apenas predadores mas uma espécie que se diverte com a caçada, que se regozija com o medo e com a dor das vítimas, e que se finge de santa, que justifica sua maldade em sua condição maldita.
Creio que uma pessoa decente deveria escolher a própria morte ao assassinato de um inocente, talvez não no primeiro dia e no calor do momento, mas o peso da culpa de uma centena de mortes, com certeza, levaria a loucura até mesmo o mais pragmático dos indivíduos que ainda tem alguma bússola moral.
Além disso, há sempre uma relação de autoridade de um lado para o outro, o vampiro é dono, nunca é parceiro, mesmo quando há uma vampirização a relação é de Senhor e de Cria, onde o original é sempre mais forte, mais poderoso, mais cruel. Mas a coisa vai mais além: o vampiro é um sedutor, que atrai a sua presa criando para si com uma imagem majestosa e sensual, além da promessa de riquezas e de prazer. Na verdade, a vítima acaba presa em uma teia de dominação mental e social, onde lhe é roubada a autonomia dos próprios pensamentos, substituída por um desejo de sangue incontrolável, e lhe é privada a estrutura social, onde ela passa a fazer parte de um novo clube, onde todos lhe tem anterioridade.

No final das contas, essas vítimas são roubadas do que a sociologia chama de Agência, a capacidade de tomar decisões próprias, e se tornam escravos dos vampiros, muitas vezes sem perceber. A metáfora da perda da luz solar me parece muito adequada por essa ótica.
Por fim, todas as histórias de terror são analogias para a nossa própria realidade, os monstros são reais, só não são claros como nos livros. E então, quem são esses monstros em nossa sociedade, e no fundo de cada um de nós, que se fingem de reis, que escravizam suas vítimas e que vivem sempre insatisfeitos?
A minha conclusão é que são os “Narcisistas”, tanto aqueles que sofrem um distúrbio psicológico, quanto aqueles que foram criados num ambiente em que esses comportamentos são normalizados, entre eles, aristocratas, bilionários e vários artistas e atletas, que são adorados por multidões de alienados e que pisam nelas como se fossem baratas.

Muitas pessoas enxergam e ficam enojadas com as imoralidades e os abusos cometidos por pessoas famosas, e é bem provável que a gente esteja vendo apenas a ponta do iceberg na maioria dos casos. Cada vez mais fica claro, para mim, que gente como Elon Musk, que está constantemente na mídia e adquiriu recentemente o Twitter, não deve nada para narcisistas clínicos, chegando a delírios eugenistas e de imortalidade e colonização do sistema solar em seu nome.
Fico envergonhado só de pensar que, talvez, um pouco desse tipo de monstro desumano exista em mim, mas se eu tivesse tido a criação que eles tiveram, talvez fosse tão desumano quanto eles…
Eh, não sei se vou continuar jogando Vampiro: A Máscara.


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