Doutor Sono e como Stephen King acordou e caiu da cama 

Confira minha resenha COM SPOILERS do filme Doutor Sono

Começamos falando de O Iluminado, o livro e o filme, que todos conhecem e não provocaram insônia em ninguém.

De todas as maneiras de estabelecer um debate, coube a Stephen King e ao diretor Mike Flanagan o crédito pela criação da fórmula mais recente. Infelizmente, para King, a iniciativa não ajudou os seus argumentos: criar uma continuação para um filme.

No caso não é um filme qualquer. A novela O Iluminado de King foi adaptada em 1980 por Stanley Kubrick. Estrelada por Jack Nicholson, foi aos poucos sendo reconhecida como uma das grandes obras de terror já feitas. Ao final dos anos 80’s, King passou a criticar a adaptação, motivado pelo fato de que, naquela época, as adaptações de seus livros começaram a se tornar muito lucrativas e encontraram espaço para o reconhecimento crítico e na festa do Oscar. 

Segundo King, Kubrick havia modificado a sua obra, alterando o personagem Jack Torrance, que deveria ser um homem comum, essencialmente bom, que lutava para reter a sanidade e os laços familiares, sendo assombrado pelas forças malignas que encontrou no Hotel. Segundo ele, a atuação de Nicholson e a visão de Kubrick davam a entender que Jack já estava louco quando o filme começava e nada havia a perder (a despeito do fato de que Jack já enfrentava problemas com alcoolismo e era culpado de violência doméstica, no começo do livro). 

King tentou forçar a mão no debate com uma adaptação para a televisão da obra. Mas, feita nos inícios dos anos 90, a série é esquecível. Sem orçamento para a produção, parece pertencer aos 70’s de tão simplista, especialmente considerando que foi realizada depois de Twin Peaks, Arquivos X ou Plantão Médico. Comparado com o filme de Kubrick, não existe força para justificar qualquer comparação, pois o orçamento e a ambição da série não permitem que as duas obras sejam colocadas em pé de igualdade.

O tempo não ajudava S.K. (Stephen King, não Stanley Kubrick), já a reputação de Kubrick e o seu O Iluminado apenas se solidificava. Porém, King, o escritor, tinha uma nova ambição. Na sua cabeça, os muitos “easter eggs” que ligavam as suas obras serviram de base para um “Kingverse”, em que seus antigos personagens eram reciclados. Assim, em 2013, publicou Doutor Sono, continuando a história de Danny Torrance, o filho de Jack, que sobreviveu ao Hotel e tem outros problemas para enfrentar. É claro que o livro de King é uma continuação ao romance de King e pouco ajuda neste debate. Até que uma adaptação de Doutor Sono foi realizada por Mike Flanagan com Ewan McGregor no papel principal. 

Mike deixou claro que seu objetivo não era fugir de Kubrick, mas de criar um filme que funcionasse como um elo entre os dois SKs. Assim, ele modificou parte da história – contando com o apoio de King – e buscou referências visuais na obra de Kubrick. 

O resultado é o filme Doutor Sono, que de uma só vez dá razão ao “time Kubrick”. Como?

Primeiro cabe aqui um julgamento moral. Como todo autor, King tem o direito de fazer o que quiser com a sua obra. Não é o primeiro autor a ter esses não-me-toques. Cervantes, o grande Cervantes, reagiu de maneira similar ao tomar conhecimento de uma segunda parte do Dom Quixote que gozava de algum sucesso. A obra havia sido feita por rivais de Cervantes (provavelmente) e satirizava o autor e seus personagens. Foi essa a motivação para o autor espanhol escrever a segunda parte do Quixote. E o resultado não poderia ser melhor: apesar de ser menos cômica, a segunda parte fecha a história do personagem com perfeição, transformando o livro de uma paródia às novelas de cavalarias a uma obra sobre a psicologia de dois personagens únicos da literatura, de tal forma que é quase impossível pensar no Dom Quixote sem pensar no conjunto das duas partes e relegando de vez a sequência apócrifa em uma mera curiosidade literária. 

Há, entretanto, uma diferença. O filme O Iluminado já não é uma obra de Stephen King. É uma obra de Stanley Kubrick. Não há pecado em modificar uma obra. Na verdade, é o motor de toda arte. Como diria Jorge Luís Borges: o original é infiel à cópia. Cabe aqui pensar no que se trata cada obra e se a versão de Kubrick merece a crítica de King. 

Stephen King é um bom escritor de terror. Tem problemas sérios para desenvolver novelas e fechar seus longos textos, mas usa bem a referência do terror anglo-saxão, não apenas literária, mas de quadrinhos e cinema, para dar cor às suas obras. Na maioria das vezes, é um escritor juvenil. Seus “terrores” são valentões de escola e monstros retirados de filmes velhos. Funciona melhor em histórias curtas. São terrores muito visuais, o que faria da classificação como gótico moderno acertada. Além disso, incluí vários personagens escritores, em geral enfrentando problemas por algo que escrevem ou deixam de escrever. É o medo da própria imaginação (ou a possível falta de). 

O Iluminado talvez seja seu melhor romance. Há uma tensão crescente na obra, mas passa longe de ter grandes personagens e por isso funciona enquanto acompanha Dan. Faz sentido que uma criança sinta muito medo não por imagens de morte (ou mortos), mas da imagem do pai. Além disso, existe um certo exorcismo na obra: o terror causado pelo alcoolismo é importante para King, mas é algo pessoal. 

No caso de Kubrick, por mais difícil que seja definir suas obras, há um constante terror causado pela natureza humana. A violência e o potencial de destruição da humanidade são seus temas e são expostos por uma fachada de civilidade ou de progresso. A violência de Alex em Laranja Mecânica, apesar de seu gosto por Beethoven e da psiquiatria. A bomba atômica do Doutor Fantástico. Os duelos em Barry Lyndon. A sociedade secreta em De olhos bem fechados. A guerra em Nascido para Matar e em Glória Feita de Sangue

O melhor exemplo é naquele filme de terror que é 2001. Quando o monolito provoca a evolução dos entre os primatas, qual é a cena que se segue? Matança e a descoberta do uso da ferramenta como arma. Quando o monolito age sobre HAL 9000, o que acontece? Ele se torna um serial-killer, sem qualquer remorso. Em O Iluminado, o tema não é o alcoolismo de Jack, algo pessoal para King. É a violência que ele pode produzir, inerente, já que herdou dos nossos ancestrais primatas. A terrível simetria do hotel, digna de poemas de William Blake, é uma representação do labirinto que é a história humana e a unidade familiar, assim como as sociedades, se desfazem porque Jack é naturalmente violento, como todos os homens. 

Sim, isso quer dizer que Jack já seria louco desde o começo, como argumenta King. Mas, em todas as suas histórias, Kubrick usa elementos para acionar a violência. Não são animais descontrolados. Existem “Monolitos Negros” em todos os filmes e em O Iluminado é o Hotel. A obra de King é sobre uma casa mal-assombrada e o medo causado pelo alcoolismo. No filme, a casa mal-assombrada está presente, mas é um álbum de fotografias para o verdadeiro terror: a natureza humana. É uma obra muito mais madura em sua temática, mas ambiciosa. A reação de King chega a parecer uma certa inveja profissional. Kubrick foi mais longe, ou ao menos tentou. 

Claro, que a intenção é apenas uma mola para a execução do projeto e Doutor Sono é uma evidência da execução superior de Kubrick.

DOUTOR SONO (Acorde que vem SPOILERS)

No filme, Dan é um adulto, às voltas com o alcoolismo e seus fantasmas. Com ajuda de Dick Hallorann (ou o fantasma de Dick Hallorann), descobre uma maneira de manter os fantasmas do Hotel aprisionados, pois agora, eles são seres que se “alimentam” do seu brilho. Com isso, descobrimos que existe um grupo de pessoas, chamado de True Knots, que se alimentam e caçam pessoas (crianças principalmente) para se alimentarem do tal brilho, cujo sabor é “ampliado” pelo medo e pela dor. 

Esse grupo é descoberto por uma menina especialmente poderosa, Abra, que entra em contato com Dan. Como está cada vez mais difícil encontrar brilho em quantidade suficiente (por causa do uso excessivo da internet ou dos celulares, as pessoas têm menos imaginação, portanto menos medos), ela se torna o próximo prato no menu dos caçadores de “iluminados”. Até aí, o filme é um tipo de filme de super-heróis. Os vilões se identificam por codinomes, se vestem de maneira peculiar e cada um deles tem um tipo de poder específico. 

Flanagan é fã de Kubrick e constantemente reutiliza tomadas e falas de O Iluminado. Chega a recriar cenas com Danny e mãe, usando um diálogo idêntico a um momento em que Danny sumira no filme, inclusive com a voz esganiçada de Shelley Duvall. Repete inclusive as longas cenas acompanhando carros passando por estradas sinuosas, filmadas de longe. 

King comparou o filme de Kubrick com o belo Cadillac, sem motor. Sem alma. É aqui o primeiro erro. Inseridas em Doutor Sono, essas cenas são como atrações de um parque de diversão, que você sabe que apenas se parecem com os personagens originais da Disney. São fantasmas assombrando Mike Flanagan e não a audiência. Elas não estão ali para algo além de nos fazer lembrar do terror que um dia causaram. 

A história é derivativa de outras histórias do próprio King, que constantemente enche seus “vilões” de capangas, os coloca em acampamentos baratos e outras áreas periféricas. Mas eles pouco importam. Nenhum deles tem personalidade ou importância, exceto a líder, Rose the Hat. Mesmo o segundo membro mais destacado deste grupo, Crow Daddy é reduzido a um estereótipo: como nativo-americano, ele é um caçador capaz de encontrar as presas que o grupo precisa. E o filme perde tempo mostrando a iniciação de Snakebite, que não tem importância nenhuma para a história. 

Também é derivativo de um RPG: Changeling: the Dreaming. Nele, fadas se alimentam do “glamour”, uma energia derivada da imaginação, que está em falta no mundo moderno. Algumas fadas conseguem se alimentar da energia gerada de emoções positivas como esperança e alegria, enquanto outras se alimentam da energia gerada por emoções negativas como medo e dor. E como um RPG, o filme se desenvolve: após um duelo inicial entre as forças de Dan e Abra contra o grupo de Rose, nos movemos para o palco do duelo final. É claro, o duelo é no Hotel Overlook. 

Para levar os personagens até o hotel, o filme decide que Dan precisa agir e falar de maneira incoerente. Ele impede o pai de Abra de pedir ajuda policial para proteger a filha, afirmando que os True Knots são pessoas poderosas com ligações com figuras influentes. Mas o grupo vive em acampamentos itinerantes, completamente marginalizados, sem qualquer indicação de terem laços com humanos normais. Ele nem ao menos conhece um único membro do grupo e nada que Abra lhe contou parece sugerir tal coisa. 

Depois, ele diz que os dois não poderiam enfrentar Rose, por isso precisavam de algo poderoso e pior do que Rose (os espíritos do hotel). Mais uma incoerência: Abra surrou Rose em todos os encontros que tiveram. De fato, o que foi estabelecido em uma cena anterior e que é a única razão para Rose ainda estar viva, é que ela é incapaz de enfrentar Abra. Mas precisamos do Hotel, senão o fantasma de Kubrick não pode ser exorcizado.

A partir daí, temos apenas uma tentativa de recriar as imagens de Kubrick e dar ao filme o final que o cineasta se recusou a dar: explodir o hotel. Flanagan é um Édipo, tentando furar seus olhos pelo pecado de admirar Kubrick. Somos brindados com repetecos de cada cena famosa do filme, como o elevador com o rio de sangue ou as gêmeas e nenhuma delas tem qualquer importância. Abra é, como estabelecido, mais poderosa do que Dan, Rose e o hotel, e sem muito esforço se livra de um Ewan McGregor fazendo cosplay de Jack Nicholson. Apenas falta ir para Massachussets e entrar para os X-Men. 

King, ao final do filme, se sentiu cheio de orgulho em dizer que “agora” o que havia criticado no filme de Kubrick parecia bom e justificado. É algo freudiano, pois, tirando a atuação competente do elenco principal, Doutor Sono é um filme sem alma, que separou de vez um artista que será lembrado como um dos maiores da sua arte e um escritor apenas eficiente. 

Sempre foi uma questão de visão. Não de brilho. 

Publicado por João Camilo de Oliveira Torres

Escritor, podcasterEditor do Quixote + Do, autor do roteiro da Graphic Novel “Sci Fi Punk Project”, participou de várias coletâneas do Livro de Graça na Praça, e da coletânea “Ler Novos Autores” da Editora Jaguaratirica, “Beleza e Simplicidade” da Editora Assis, “Cheiro de Minas” e “Laços de Avós” da Páginas e das antologias de poesia “P.S. It’s poetry” e “P.S. It’s still poetry”, lançadas nos Estados Unidos. .

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