
Parece déjà vu, mas desta vez os brasileiros podem ficar tranquilos, pois Shakespeare é a coisa menos interessante em um filme sobre Shakespeare, e Pedro Mescal não parece ter chances de concorrer com Wagner Moura nos Oscars.
As similaridades com Shakespeare Apaixonado param aí. O filme de 1998 é uma comédia cocriada por Tom Stoppard, um dramaturgo, apoiada em ironias intertextuais, reconhecidas mais facilmente por aqueles com maior familiaridade com o texto shakespeareano, o que tem levado muitos espectadores a depreciarem a obra, uma reação negativa impulsionada pelo caso Weinstein. Já Hamnet é baseado em uma novela de Maggie O’Farrell, que se preocupa com o leitor comum a ponto de alterar o nome da personagem principal, a esposa de Shakespeare, Anne Hathaway, para Agnes, a fim de não criar confusão com a atriz de O diabo veste Prada.

A vida privada de Shakespeare é uma lacuna e isso tem levado à especulação de todas as formas para preenchê-las, o que gera uma produção constante, tanto por parte da academia quanto por parte da indústria cultural de produtos (peças, livros, filmes, quiçá videogames) sobre o autor. O que apenas reforça a universalidade e intemporalidade do autor em todas as camadas da população. Ele é ao mesmo tempo erudito e popular, cômico e trágico, familiar e estranho.
Mas em Hamnet o foco é Anne/Agnes, interpretada por Jessie Buckley. Se o Shakespeare de Pedro Mescal é apenas um bom marido, um bom pai, um bom homem, Jessie tem fama de ser bruxa, falcoeira, consegue intuir o futuro, entender a psicologia do marido, ou seja, é tudo menos uma musa como a Viola de Gwyneth Paltrow. Com Shakespeare passando a viver em Londres, distante, o filme, durante boa parte, é um drama intenso e intimista, sobre uma mãe cuidando de três filhos, até o falecimento de um deles.

A diretora Cloe Zhao basicamente repete o que ela fez em Eternos. No filme da Marvel, Circe, a “esposa” de Ikaris, é quem vê a história dos super-heróis de longe, e toda a carga emocional está centrada nela, que tenta manter a família (os outros Eternos) unidos, enquanto Ikaris é quase ausente. Aqui, é a vez de Jessie Buckley fazer as honras.
Que Shakespeare pudesse ser o menos poético de todos os seres já intuía outro poeta inglês, John Keats, e parece ser um acerto que o filme o apresente desta forma, mas, Hamlet, a peça, não é apenas um veículo para o luto do autor, ao contrário, tratando-se de uma das obras mais intricadas concebidas pela humanidade. Ainda assim, o filme muda, quando chegamos à peça. Agnes passa a ser espectadora, e não apenas a esposa do autor, mas cada possível espectador de Hamlet. Também começamos a peça com confusão e terminamos com aquele silêncio final que Agnes sente.

Como todas prequels, e Hamnet é uma, o filme tem a necessidade de explicar o que não importa. Por que Shakespeare foi para Londres? Por que Shakespeare escreveu uma peça sobre um filho atormentado pelo fantasma do pai? Por que Shakespeare escreveu tantas comédias em que mulheres se passavam por homens? Essas respostas não importam, pois o mistério de Shakespeare não são as lacunas de sua vida, mas o recheio de suas obras. Elas provocam as questões, que vão bem além de ser ou não ser.
No final de Hamnet, é Shakespeare quem rouba a cena. Impossível não ser assim.
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