A segunda temporada confirma que existe Andor e um universo derivado chamado Guerra nas Estrelas e não o contrário e isso faz sentido
Ezra Pound foi um poeta americano lá no começo do século. E também foi um fascista e, como deve acontecer com todos os fascistas, se ferrou. Mas, cultura é como a farofa que acompanha o peru de Natal. Ou seja, com uva-passa, que muita gente separa (eu não, deixemos claro que farofa de fruta é da hora e é muito pior essa pessoa que passou a enfiar cenoura ralada no salpicão), podemos pinçar o que Ezra fez de bom. Dentre suas ideias estava um ataque a Virgílio.

Ezra afirmava que Virgílio era um mal poeta e que bons eram seus tradutores. Esse Virgílio é o grande poeta da época de ouro romana, com três obras fundamentais, especialmente a “Eneida”, protagonizada um personagem secundário da Ilíada, o príncipe Enéas. Ele sobrevive o massacre pós-cavalo de madeira, promovido pelos gregos, viaja pela rota que seguiria Ulisses na “Odisseia”, simbolicamente, derrota Cartago ao recusar casar-se com a rainha Dido, e funda Roma.

Toda vez que você ouvir a palavra clássico sendo utilizada (mesmo para aqueles filmes produzidos pela produtora The Cannon Group, de Golan e Globus, com o Chuck Norris, antes mesmos deles terem sido lançados diretamente para VHS), falamos de Virgílio e a Eneida. A obra era considerada o modelo ideal de perfeição estética e é por isso que Dante escolhe o poeta romano como seu guia na “Divina Comédia”. Tudo a ver com a mensagem e o modelo que deveria ser seguido a partir dali e que deu origem ao humanismo, à Renascença, ao mundo ocidental moderno, e aos recitadores esnobes de línguas mortas, especialmente o Latim.
Parece tolice essa afirmação, afinal se há evidência da qualidade de um artista, é o alcance de sua obra e nenhum poeta durou tanto no ocidente. Mas, Ezra era fascista, não tolo, especialmente em se tratando de literatura. Portanto, separemos a parte não digerível e vamos consumir a verdadeira grande ideia: ter sido o original, o primeiro, não quer dizer que é o melhor. Na literatura, existem tantas traduções que são criações valiosas por si mesmas: as traduções de Homero; das “1001 Noites”, a tradução do “Rubayiat”, de Fitzgerald; as traduções da Bíblia e assim vai.

Acha isso óbvio?
Então, sabe aquela afirmação de que os livros são muito melhores do que o filme? Ela é justificada apenas porque o senso comum prefere o criador original. É uma mentira. Vários livros são inferiores aos filmes que deram origem, ou, as obras possuem nível similar. Não vou fazer uma lista porque ficaria muito extensa. Se eu citar um ou dois exemplos, as pessoas podem achar que são apenas exceções que confirmam a regra.
Aplique isso não apenas para as traduções, mas também para obras como a “Eneida”, que se sustenta quando comparada ao ‘original’ de Homero. E Dante, que se coloca no Paraíso sem passar vergonha, ao ficar ombro a ombro com Virgílio. Chegamos assim na afirmação de Jorge Luís Borges: o original é infiel à cópia.

Para o argentino, um notável reciclador, a situação é ainda mais mágica. O tempo dá nó e, ao sermos infiéis aos nossos mestres, alteramos o passado. Não de DeLorean, mas na forma como a criação do passado é vista. Querem um exemplo? Agora que descobrimos que Machado de Assis era negro, e não branco como nos ensinaram por mais de um século, as leituras de sua obra estão passando pela presença/ausência da causa escravista. Isso não faz da obra de Machado menor ou maior, faz dela diferente. E também explica o bom motivo de continuarmos a ensinar Machado nas escolas. Não sabemos, nem podemos saber, o que essas novas gerações vão fazer com ele. Mas vai ser algo interessante, aposto.

E o que Andor tem a ver com o olhar de Capitu?
As chamadas prequels são formas de Hollywood sugar o dinheiro e satisfazer a fragilidade do ego do fã, que precisa acreditar que algo de novo sendo feito (não há. Histórias acabam e isso é bom).
Mas, como sugeri ao falar da primeira temporada (aqui), Andor prefere contar uma história. Sabendo que precisa mexer Cassian para o ponto de partida de Rogue One, a segunda temporada saltou de ano em ano. Foi como se tivéssemos uma trilogia só dele. Não só dele, porque Andor focou nas personagens femininas e Cassian e Luthen são petecas sendo jogadas de lado a outro da quadra. Se um bordel havia sido introduzido na galáxia muito distante, o vocabulário do C3-PO cresceu. Agora ele pode falar em estupro e stress pós-traumático.

Mas Hollywood, especialmente a Disney pré-fascista laranja, já adotava um discurso focado nas personagens femininas, certo? Não deste jeito. Como Andor não se preocupava em bajular, mas contar uma história, sua estrutura é mais sólida e honesta do que as demais séries e filmes. Com isso, permite que o discurso ideológico (pobre do espírito sem ideologias que repete a farsa neoliberal de que as grandes ideologias morreram) e político se torne mais forte e íntegro.
Andor, nesse sentido, é a obra mais crítica da realidade americana (e internacional) produzida por lá. O maravilhoso casal formado por Karn e Dedra rouba cada cena em que aparece. São casais tão reais, tão possíveis em sua incapacidade de demonstrar emoções, que não precisam de apetrechos e armaduras para mostrar a desumanização do Império. Nada de ciborgues. E a tragédia deles, como anti-heróis, estava escrita no próprio DNA. São suas qualidades, as mesmas que permitem que tenham sucesso dentro da engrenagem do Império, que vão determinar seu destino. Édipos da escrivaninha.

Um dos arcos desta temporada mostra a resistência de Ghorman, claramente inspirada nos filmes do pós-guerra que focavam na resistência francesa contra o Nazismo (sim, em nenhum momento Andor perdeu a mira certa). A nostalgia morre quando se transforma em um ato de desespero, de suicídio e tragédia. Os rebeldes são manipulados pelo Império, falham, são massacrados e se transformam em tragédia, como o genocídio praticado contra os Palestinos. Porque a resistência francesa teve sucesso, a rebelião Ghorman não. É desesperador. Apenas cínicos como Luthen e niilistas como Cassian parecem entender – ainda que discordando – seus papéis na história.

Seria isso então, algo distinto de Guerra nas Estrelas? Nunca.
Lembre-se de como Guerra nas Estrelas começou. Não havia esperança, não mesmo. O primeiro filme era feito de desespero e uma vitória quase Pírrica: uma grande arma destruída, em troca de um planeta inteiro. O último herói (Obi-wan) morto. E no filme seguinte, descobrimos as mentiras de Obi-wan sobre Darth Varder, perdemos uma mão, um Han… Guerra nas Estrelas era a história de três heróis desesperados, sem esperança. Como é Andor.
Cassian entende Luthen, alguém cuja busca nietzschiana pelo super-homem o leva a escolher como única escapatória algo impossível. Pois ele quer alcançar o impossível e como tudo vai dar errado, sobra a Fé. É esse desespero, essas vitórias sem vencedores, essa fé que dá significado o universo Guerra nas Estrelas. Não é o poder, ou as aventuras. Mas não para os dois. Esse é o mundo em que Mon Mothma se ergue, abandonando a elite decadente e a crença na República. Para ela, haverá fé.

Se a segunda temporada reforça a força feminina com narrativas que exploram Mon Mothma, Blyx, Dedra e Kleya, estão fazendo nada além do que recuperar Leia dos biquínis dourados. Andor, efetivamente, nos permite reavaliar os valores, alguns perdidos, de Guerra nas Estrelas e, talvez entender, que os heróis surgem depois do sofrimento, da luta e do sacrifício e que não adianta. A cadela do fascismo está sempre no cio. Não podemos descansar, que apesar da incompetência dos fascistas, sempre cavando sua própria cova, é preciso um empurrãozinho.
