Confira a resenha, sem spoilers, de João Camilo Torres do novo filme do vampirão
O personagem é parte da memória coletiva da humanidade e, como tal, muda constantemente de forma e continua o mesmo
A novela Drácula de Bram Stoker é o ponto de convergência deste personagem que personifica o medo do estranho, do desconhecido, do estrangeiro. Portanto, tem entre seus criadores diversos autores, antes e depois de Stroker. Curiosamente, sua história literária tem em comum com sua história cinematográfica a questão central da autoria.

Para um, Lord Ruthven de Polidori e Carmilla de Sheridan Le Fanu. Para outro, tantas versões de Nosferatu de Murnau e Herzog, ou o meta A Sombra do Vampiro, estrelado por John Malkovich e Willem Dafoe. E para ambos, a derivativa A Hora do Vampiro (em inglês Salem´s Lot) de Stephen King, que virou minissérie de TV nas mãos de Tobe Hooper.
Assim, cada nova versão do Drácula, quer baseada na literatura, com o mesmo nome ou não, desperta o interesse não pela novidade em si, mas pela capacidade de apresentar o mesmo de sempre com as marcas da mudança do tempo. Utilizar personagens universais é um exercício de manipulação de contextos. Nosferatu de Eggers parece ter como referência não a versão de Murnau, apesar da influência expressionista, mas sim outra versão: Drácula de Francis Ford Coppola.

Por serem baseados em uma mesma obra e servirem de veículo para que ambos diretores professem sua admiração por estéticas e técnicas cinematográficas do passado, há momentos em que as cenas e diálogos parecem se repetir como reflexos em um espelho e, até mesmo, negar ostensivamente o antecessor, como na cena em que Ellen e Orlok (Mina e Drácula) discutem sobre o amor.
Com Coppola, Gary Oldman pode garantir que saberá o que é amar. Já Skarsgård cospe nesse prato. Isso porque, a principal diferença entre as obras, além do visual dos dois condes, é que o dândi romântico de Coppola foi concedido em uma época do terror causado pela forma como a epidemia da AIDS foi utilizada pelos governos e pela mídia para perseguir minorias. “Sangue é vida” adquire contornos irônicos. E a sexualidade dava espaço para a sensualidade constrangida por longos vestidos e espartilhos, especialmente o espartilho eficiente do amor romântico.

No longa de Eggers não há amor. Ou bem, há entre Ellen e Thomas, mas é frágil, e de nada serve para o casal ao enfrentar o poder irresistível de Orlok. Há uma tentativa de trazer para a discussão a psicologia que pode parecer devidamente localizada, já que o longa se passa na Alemanha, mas é a Alemanha romântica e bélica, do início do século XIX, o cenário deste filme. Freud está há décadas para acontecer.
Assim, a influência de Orlok sobre Ellen é reduzida a uma confusa aflição mental, que se manifesta de maneira sexual. Em determinados momentos, chega a ser estabelecido que essa influência é mais poderosa em quem tem temperamento mais parecido com o de animais.

Nessa confusa quimera que mistura biologia, crendices e a mente humana, lembramos de outro filme, pouco conectado com Drácula: Pobres Criaturas, até mesmo por certa semelhança física entre Emma Stone e Lily Rose-Deep. Mas, se em Pobres Criaturas, lidar com a líbido é parte de seu crescimento e o caminho de conquista da independência, para Ellen é apenas uma maldição. Ceder ao desejo é uma tortura e ela é, desde a infância, presa ao destino de mulher-sacrifício, já que seu destino está previsto em um velho livro de feitiçaria.
Eggers é responsável pela releitura das histórias de terror com A Bruxa, em que mistura elementos racionais e a superstição para gerar tensão, terror e impacto. O Farol subverte o final davidlynchiano ao esmagar dois homens solitários e O homem do norte se parece inspirado pelo desejo de contar uma história inspirada no videogame Skyrim. Em todos eles, o cineasta é capaz de criar cenas intensas com as tintas pesadas do estilo gótico.

É apenas isso que sobrevive em Nosferatu, mas, para Drácula, isso não é novo. O terror causado pelo estrangeiro, pelo estranho, e tal coisa é essencialmente sombria, gótica (basta lembrar que Alien de Ridley Scott é basicamente um Drácula espacial e contrastava macabramente com as luzes e otimismo do então recém-lançado Guerra nas Estrelas). Seu Nosferatu é apenas mais um monumento suntuoso à história do cinema.
Mas é normal que assim seja. Drácula estará de volta depois de mais uma versão do Rei Arthur, e de um novo Sherlock Holmes. Aguarde.

