Qual é o segredo do sucesso de Cyberpunk: Edgerunners?

Confira a resenha com spoilers de Renato Vieira sobre o premiado anime baseado no RPG

“Cyberpunk: Edgerunners” ganhou merecidamente o prêmio de anime do ano do maior canal de anime japonês, o Crunchyroll. O interessante da coisa é que ele ganhou “apenas” esse prêmio, não ganhou em mais nenhuma categoria, nem ação, nem drama, nem animação, nem personagens, nada, então por que será que levou o maior prêmio da noite? A resposta mais óbvia seria que ele deveria ter ganhado mais prêmios, mas por algum tipo de injustiça ou preconceito acabou sendo prejudicado. Não creio que seja o caso, talvez o único prêmio tirado dele foi o de melhor personagem coadjuvante, Rebecca roubou nossos corações e foi “roubada” nessa competição.

Então de onde veio o sucesso de Cyberpunk se não dos méritos técnicos? Eu acredito que Edgerunners, apesar de ser um mundo 50 anos no futuro com pessoas super-humanas e tecnologias indistinguíveis de mágica, é a história mais “real” que eu vi nos últimos anos. Todos estão lutando para sobreviver, e talvez até um dia escapar, num sistema capitalista distópico, em que só os ricos têm acesso a serviço médico de qualidade, a educação é estratificada e estudar em boas escolas é essencial para conseguir um emprego bem pago, a segurança é inexistente, gangues se matam em plena luz do dia na praça central da cidade. Se você enxergou que tudo isso já acontece no nosso mundo, você não está sozinho, porque, na verdade, ele é apenas o nosso mundo elevado a enésima potência.

O RPG que deu origem a todo esse universo de jogos de videogames, livros e quadrinhos, além da série de TV, foi escrito por Mike Pondsmith, um homem negro americano, e existe uma clara analogia com a experiência de vida negra neste mundo, mas ela é representada mais como classe social. Os pobres são escravos do sistema, independente da sua posição no mundo, se a corporação decidir que você é descartável não há recurso, com sorte você terá tempo de correr pra um ripperdoc, porque os implantes no seu córtex cerebral foram desativados e você esqueceu como se respira. 

No jogo Cyberpunk 2077, o objetivo da Arasaka, maior corporação mundial, é, literalmente, roubar as almas das pessoas, transformando-as em arquivos digitalizados, programas de computador que simulam os pensamentos e aspirações das pessoas, mas que podem ser minerados e manipulados ao bel prazer dos interesses da empresa. E isso já acontece na realidade corrente, a indústria de fake news que idiotizou milhões de pessoas em todo mundo, que vende as ideias mais absurdas como terra planismo, anti vacinas e criou figuras messiânicas de políticos claramente fascistas. Nada mais é do que uma grande manipulação das mentes humanas que não passa por implantes cibernéticos.

Edgerunners é uma história que vive e morre em seus personagens, pessoas normais que não estão tentando salvar o mundo, nem são moralmente superiores. Muito pelo contrário, as motivações de quase todos os personagens passam por algum tipo de plano de fuga. Seja para a Lua, literalmente, como Lucy fugindo da Arasaka, que lhe abusou desde criança, seja o David Martinez tentando se agarrar às aspirações alheias, pois não é capaz de ter esperanças próprias, ou até mesmo da Kiwi, que vendeu seus amigos e se arrependeu amargamente. 

A mentalidade de quase todos não difere muito de uma pessoa que joga religiosamente na loteria, se agarrando a uma chance em um milhão de escapar dessa vida miserável e tirar a sorte grande. E quando eu digo que vive e morre eu não estou exagerando. Edgerunners é um drama disfarçado de ação em luzes neon. Assim como em nossa realidade, a maioria dos personagens não escapa da armadilha capitalista de ganhar no Show do Milhão, na loteria, de ficar famoso, de, essencialmente, escapar dessa corrida de ratos que nunca chega a lugar nenhum. É deprimente pensar que até a esperança é usada como arma contra as pessoas comuns tanto lá quanto cá.

Seria fácil cair na armadilha de achar que os personagens de cyberpunk são heróis rebeldes lutando contra um sistema injusto, vilões imorais cometendo crimes sem limitações nem ética, ou até mesmo como sobreviventes num mundo terrível e distópico. Nada disso é mentira, mas o cerne de cyberpunk é, por mais incrível que pareça, o Amor, e não apenas o amor romântico de David por Lucy, ou de Rebecca por David, ou Dorio por Maine, mas o amor maternal de Gloria Martinez pelo seu filho, o amor de Pilar por sua irmã, Rebecca, e vice-versa, e de todos na equipe em geral, que são uma família de pessoas que se adotaram mutuamente. 

Mas o truque, ou melhor, a trapaça da história é que por mais nobres e generosas que sejam as motivações dos Edgerunners, eles vão longe demais, cometem todo tipo de crime para proteger seus amados de uma realidade cruel. Eles vão lentamente se perdendo no mundo, sob essa luz, a cyberpsicose, que é a responsável direta e indireta pela morte de vários personagens, e mais do que apenas uma doença física causada pelo abuso de implantes cibernéticos e imunossupressores. A cyberpsicose é uma doença da alma, uma consequência direta de ultrapassar os limites éticos manifestada em alucinações e perda da realidade. E numa grande ironia cósmica todos estão ao mesmo tempo se sacrificando uns pelos outros, se perdendo e destruindo aquilo que eles estão lutando para salvar.

No final das contas, fica a ecoar na minha cabeça a pergunta inicial do jogo “você prefere morrer velho como um zé-ninguém ou ter uma morte gloriosa antes dos trinta?” e a única certeza que eu tenho é que todas as respostas são erradas…

 Então qual será a pergunta certa?

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