João Camilo comenta a obra mais famosa da mangaka Rumiko Takahashi
De acordo com o Dicionário Michaelis online: Impertinente – im·per·ti·nen·te.
adj m+f – 1 Que é pouco adequado a uma situação, momento ou pessoa; impróprio, inconveniente, inoportuno. 2 – Que causa indisposição, mal-estar; desagradável, desconfortável, incômodo.
adj m+f sm+f – 1 – Que ou aquele que falta com o devido respeito aos demais; atrevido, desrespeitoso, insolente. 2 – Que tem mau humor; que se queixa de tudo; implicante, rabugento, ranzinza.
Com base nessa definição, chamarei de impertinência a forma como Rumiko Takahashi utiliza o humor nos seus mangás, especialmente em Ranma ½. A impertinência, no humor, é a reação exagerada, da maneira mais abusada possível, dos personagens, mesmo que sem malícia. Rumiko constantemente faz uso disso para colocar seus personagens em situações extremas, mas genuínas, algo que encontramos, por exemplo, nas obras de Charles Dickens.
Comparar a autora com um romancista consagrado não é uma novidade. Suas obras, especialmente a melhor delas, Maison Ikkoku, são caracterizadas por longas narrativas entrelaçando diversos personagens claramente distintos, explorando seus relacionamentos com profundidade e diversidade. Sua especialidade é a sátira, em geral aos costumes da sociedade japonesa, mas ela sabe trabalhar com subgêneros variados como artes marciais, fantasia, horror ou ficção científica.

Assim como Dickens, Rumiko costuma criar a história em torno de um núcleo (dois personagens, em geral) e preenche o entorno desse núcleo com personagens muitas vezes caricatos. A caricatura permitia Dickens romancear a realidade (exagerando aspectos brutais como a pobreza da sociedade vitoriana ou a vilania de seus personagens) sem que o leitor perdesse a identificação com o que estava sendo narrado. Pelo contrário, quanto mais irreal a criação, mas crível ela se tornava.
Ela funciona de maneira similar para Takahashi: seus personagens absurdos e histórias com tons sobrenaturais são verídicas, ou provocam no leitor, essa sensação. Em Dickens, o texto tendia para o melodrama e o sentimentalismo, com Rumiko o texto (ou a combinação entre texto e imagem) tende ao cômico e ao absurdo.
Encontramos exemplos de impertinência em toda a sua trajetória, mas nosso foco será Ranma ½ , que talvez seja sua obra mais popular. Ranma ½ é um clássico. Diversos termos, tropes e clichês de mangás e animes se popularizaram a partir do sucesso da obra, do final dos anos 80 e início dos 90.

Em Ranma ½, temos a história de Ranma e Akane, dois adolescentes, cujos pais, praticantes da Escola Anything Goes Martial Arts, os prometeram em casamento. Mas Ranma caiu em uma fonte amaldiçoada e toda vez que é molhado por água fria, se transforma em uma garota.
Foram nove anos de publicações e 38 volumes com 407 capítulos, em que rivais (românticos ou marciais) provocam situações, impulsionando o relacionamento dos dois personagens. O anime se seguiu e, apesar de um começo não tão bem sucedido, contou com 143 episódios, 3 filmes e 12 OAVs, gozando de grande popularidade, equiparada na época à Sailor Moon e DBZ.
A impertinência não é apenas uma reação maliciosa dos personagens (são vários personagens amorais, inclusive o Genma, o pai de Ranma, mas não é o caso aqui). De maneira geral, o enredo da história sempre escolhe o caminho “mais impertinente” possível.
O próprio mundo de Nerima, o subúrbio onde vivem os personagens, reage assim (a cidade, ou seja, sua geografia e moradores é tão viva e marcante quanto Londres era para Dickens). Os personagens sem nome fazem isso. São repetições constantes de gags cômicas (como exemplo, a velha senhora que está constantemente lavando a calçada e jogando água nos personagens que, como Ranma, são amaldiçoados), que, além de manter o espírito cômico, criam as tensões e conflitos que afetam Ranma e Akane.

É verdade que apenas a dupla apresenta um verdadeiro desenvolvimento psicológico (afinal, é a história de como os dois lidam com responsabilidade do casamento e o amadurecimento) e os outros personagens pouco ou nada saem de seus “atos”, mas não podemos pensar nisso como uma pobreza narrativa. Takahashi usa com maestria o tipo cômico para realçar as características e desafios internos de Ranma e Akane. Não é diferente de Hamlet precisar de um coveiro para o seu monólogo mais famoso.
Por exemplo, a irmã mais velha de Akane, Kasumi, é uma personagem com pouco desenvolvimento e história própria. Ela tem o papel materno e doméstico, tem poucas reações intempestivas, é sempre prestativa. Em uma história, ela é possuída por um Oni. É um exemplo de impertinência: de todos os personagens, é a única que ninguém deseja fazer nenhum mal. Portanto, ela pode fazer o que desejar, mas suas “maldades” não têm nenhum impacto. Mas, o que a gag Kasumi significa para Akane?
Kasumi é um ideal que Akane tem antes de amadurecer. Akane tem uma paixão adolescente pelo Doutor Tofu (que é apaixonado por Kasumi). Akane não sabe cozinhar e é um pouco atrapalhada (em geral afobada), características esperadas em uma “esposa ideal”. Akane perde a paciência e apela com violência.

Quando mais Akane se afasta de Kasumi (uma das primeiras mudanças é o corte de cabelo, que ela usava mais longo, imitando a irmã), mas ela se afasta da visão do papel feminino. Ocasionalmente, Kasumi retorna em cena, para provocar estranhamento com sua atitude blasé diante da realidade absurda provocada pelos outros personagens. Não é a apenas a repetição de um sketch cômico, ainda que, por conta do tamanho, a série tenha alguma dose de repetição e narrativas fillers, sem dúvidas motivadas pelas necessidades comerciais e editorais, também é o reforço da tensão entre o papel esperado da mulher japonesa e o papel que Akane consegue incorporar.
Com Ranma é a mesma coisa: a nobreza e hesitação de Ryoga contrasta com o vale-tudo que é a melhor tradição do Anything Goes (Ranma, Genma e Happosai adaptam de outras escolas os ataques para superarem os adversários e aproveitam-se de tudo que encontram no caminho), mas Ryoga romantiza uma Akane dócil, uma namorada ideal. Como a série é exatamente sobre como Akane e Ranma estão longe de serem ideias, ainda que genuínos, não é sem surpresa que ele seja sempre passado para trás por Ranma e Akane não lhe dê atenção, apesar dos sentimentos óbvios que ele tenta esconder (assim como esconde ser P-chan, o porquinho de estimação, resultado de uma maldição similar à de Ranma).
Um exemplo prático acontece na história da Reversal Jewel. Nela, Shampoo, uma das “noivas” de Ranma, ganha da Avó Cologne (uma das impertinências de Takahashi é dar nome aos personagens de origem chinesa usando produtos de higiene pessoal) uma joia que, se usada de cabeça para baixo, transforma amor em ódio e, do outro lado, amplia o amor. Shampoo passa a odiar Ranma, invertendo o papel entre os dois, já que Shampoo o persegue constantemente.

Este, passa a sentir sua masculinidade ameaçada. Ranma é um grande impertinente: o assédio de Shampoo (sem dúvida, a mais extrovertida das noivas) e das outras “noivas” sempre o incomodaram. Ao invés de se satisfazer, Ranma “sai do personagem” e passa a se preocupar com suas habilidades de sedução. De certa maneira, Ranma muda para o comportamento de Kunou (a ponto da adaptação para Anime incluir a repetida gag de Kunou agarrando Ranma em forma feminina). Assim, ele pode ser manipulado por Cologne e desafia Shampoo para uma luta.
Shampoo se esquece (impertinente) de que já foi derrotada por Ranma. É Nabiki (outra irmã de Akane) quem o lembra disso: Shampoo apenas se tornou obcecada por Ranma depois que ele a derrotou em uma luta. Shampoo é membro de uma tribo de amazonas e portanto deve casar-se com o homem mais forte que encontrar, ou seja, o que conseguir derrotá-la. Nabiki não tem motivo nenhum para sugerir tal coisa, afinal, sabe que isso vai prejudicar a irmã. Mas é a impertinência e a completa falta de escrúpulos sempre fez de Nabiki um mecanismo perfeito para impertinências que impulsionam a história.

Ranma vence Shampoo e a cena que se segue é uma tentativa de abuso sexual, sem tirar nem por. Shampoo (capaz de destruir paredes com as próprias mãos) se encolhe, chorando. Ranma, apesar de impertinente, ainda é um personagem, de maneira geral, decente. Ali, o click.
Ele percebe que está abusando de alguém mais fraco, de uma mulher, e se desespera ao notar que os colegas de escola estão assistindo tudo. (No anime, é quando Kunou aparece, reforçando ainda mais a inadequação de Ranma na cena, afinal, Kunou existe para distanciar esse tipo de comportamento de Ranma). Sair do personagem no caso não é um descuido. É a impertinência como motor narrativo: o conflito interno é exposto desta forma.

A impertinência prossegue. Cologne consegue convencer Ranma a um encontro com Shampoo, para confessar o seu amor. É uma armadilha. O ego de Ranma o deixa vulnerável, mas na hora de falar as linhas “eu te amo”, as inseguranças que marcam seu relacionamento com Akane voltam. Apesar de encarar o “romance” como uma luta (e o Anything goes ajuda a entender o motivo), ele hesita e é tempo o suficiente para que Akane apareça, usando a joia para cima, declarando todo o amor que sente por Ranma.
Não existe algo mais impertinente: 400 capítulos e quando os personagens (ou um deles) se declara, é motivado por um item mágico. O leitor sabe que Akane está falando a verdade, mas é claro que nada daquilo terá aparência de verdade para os personagens. É uma farsa. Portanto, Ranma volta ao comportamento original, o ego fala demais, irrita Akane e a história da Reversal Jewel termina com a repetição de mais uma gag: Akane soca Ranma para longe.

Ou seja: Assim como no churrasco, o coraçãozinho, a asinha, a linguiça e o pernil não atrapalham a picanha.
