Confira a crítica com spoilers sobre a série Andor
Quando Rogue One foi lançado, passei a afirmar que a trilogia original havia sido modificada e agora era feita de Rogue One – Guerra nas Estrelas – O Império Contra-Ataca, nos livrando da infantilização que Lucas imprimiu à série a partir de O Retorno do Jedi, simbolizada pelos Ewoks.
Não é que ser infantil é algo inerentemente ruim (Alice e Emília continuam sendo duas das mais interessantes personagens já criadas), mas o caminho que Lucas passou a seguir nos levou a um mundo cheio de preocupações com a segurança dessas crianças. Chega de riscos. Tudo precisa ser explicado e banalizado. As perguntas precisam de respostas, mesmo que não precisassem ter sido feitas.

Claro, Alice e Emília são evidências de que crianças se viram sem precisarem dessas proteções todas. Mas enfim, quando a Disney assumiu a produção do Star Wars, ela voltou a buscar um público mais maduro, em grande parte formado pelas versões digitalizadas dos três primeiros filmes e pelas prequels. Ou seja, um público que se sente confortável demais e preza o conforto como um direito adquirido. Sem entrar na questão da execução da trilogia final, podemos ver como passou existir uma preocupação em criar respostas para essas perguntas que nunca precisaram ser feitas.
Veja o caso de Solo. Você não consegue produzir um bom filme, independente de atores, diretores, efeitos especiais etc, se a motivação para criação deste filme não existe. Qual era a história que precisava ser contada em Solo? Como os produtores não sabiam, o filme se preocupou em existir para responder perguntas tão relevantes quanto a forma como Lando perdeu a Falcon para Han. Apesar de ser um Universo enorme, cheio de potenciais, as perguntas, é claro, estão sempre relacionadas aos heróis originais. Anakin, Leia, Luke, Han e aquele planeta isolado que é o centro do Universo: Tatooine.
As séries de streaming demonstram isso bem: Mandalorian funciona não apenas por recuperar o tipo de narrativa essencial para Guerra nas Estrelas (as séries de ficção científica Pulp como Flash Gordon e Buck Rogers). Mas, apesar de apresentar laços com o que aconteceu na série clássica, não é dependente dela. Baby Yoda e Mando apenas nos fazem pensar em Yoda e Boba Fett, mas têm independência. Suas questões e conflitos não resolvem as questões e conflitos que outros personagens apresentaram. Assim, quando a série faz um retorno ao “núcleo clássico”, é algo casual, pouco forçado, que não arrebenta a trama da série. Em termos narrativos, a coincidência (enorme, pois são galáxias) não é forçada como o romance de Anakin e Padmé.

Mas compare com as séries Boba Fett e Obi-wan. Essas duas séries não conseguem se afastar do núcleo clássico. Estão preocupadas em contar como o povo da areia faz suas armas, como Boba escapou do Sarlacc, como foi preenchido o vazio político deixado pela morte de Jaba, porque Obi-wan disse que Vader matou Anakin, e assim vai. Não existem histórias que precisam ser contadas.
Andor era uma dúvida. Havia uma história a ser contada? Rogue One funciona bem pois a pergunta: “Como os planos da Estrela da Morte foram roubados?”, que motivou o sinal verde para a produção do filme foi respondida, mas Tony Gilroy, responsável pela reescrita do roteiro e tomadas extras, entendeu que esses planos não eram importantes. O importante era que os personagens Andor e Jyn tinham uma história a ser contada e essa história tem a sua própria força. E que ainda assim realçam a importância de Luke, Leia e Solo, pois eles lutaram não pelo seu próprio heroísmo individual, mas por vários heróis sem importância que se sacrificaram por aquela causa, sem nem acreditarem em Jedis. Se essa história estava contada, o que a série nos ofereceria?
Andor, a série, caminha por uma trilha cheia de armadilhas. Seria fácil contar a história apenas de como Andor vai do ponto A ao B: de um personagem cínico e pouco interessado na política intergaláctica a um mártir da rebelião. Essa história foi contada, mas é apenas um fio da narrativa que deixa de lado perguntas sem importância e muda de vez a piada que conto no começo desta resenha: agora temos Andor e o resto.

Em um nível básico, Andor é o romance de formação de Andor, o personagem, no sentido dos romances de formação clássicos. Um jovem sem uma motivação definida acaba enfrentando uma série de acontecimentos casuais que o obrigam a sair de casa e passar pelo amadurecimento final. É o destino que faz com que se envolva em um crime, passe a ser investigado por um burocrata zeloso a serviço do Império (Karn), acabe atraindo a atenção de um líder rebelde (Luthen), que o leva a ajudar a rebelião, termine preso e assim vai. Quando chegamos ao final e sabemos como Andor zanzou de A para B, nem importa mais: o personagem passou por tantas transformações (não por acaso, o romance arquétipo deste tipo de narrativa conta a história de um jovem que passa por várias aventuras após ser metamorfoseado em um asno: O Asno de Ouro de Apuleio) que o ponto final se torna uma questão de formalidade gramatical. Cada vírgula de suas aventuras é um ponto para as aventuras que formaram a Rebelião e o próprio Império.
Pois sim, se as grandes histórias são protagonizadas por heróis como Leia e Luke, as rebeliões são feitas por homens que hesitam diante do heroico e por isso pagam preços mais radicais. O herói sacrifica a si e ao ethos que simboliza. O não-herói perde a própria vida, a sociedade, a família. O seu sacrifício destrói o que tem de mais valioso ao redor. Assim, a história de Andor enobrece a saga de Luke e Leia. Esta é a rebelião pela qual eles lutaram e pela qual jamais aceitaram deixar-se corromper (ficar velho e ranzinza é apenas a passagem do tempo, coisa que nenhum herói consegue impedir).
Mas a série se esmera em apresentar outros protagonistas. A história da formação da Rebelião é engrandecida pelo personagem Luthen, um jogador de xadrez que coloca em ação os eventos que levarão tanto o Império quanto a Rebelião aos extremos necessários para o seu duelo final. Com Luthen, descobrimos que o destino do universo não foi decidido em um duelo de sabres, mas por meio de engrenagens sociais complexas, causas e consequências, que levam Guerra nas Estrelas ao nível das melhores distopias já criadas.

Isso não é uma traição à Guerra nas Estrelas de Lucas, que sempre usou modelos reais (como a queda da República Romana ou o Nazismo) para representar o Império. Agora, a crueldade (muitas vezes gratuita) do Nazismo, a sua sanha pela burocracia, ganha dois rostos, que parecem ter sido retirados dos textos dos autores da Escola de Frankfurt como Hannah Arendt: Karn e Dedra. O Império se torna ainda mais terrível por ser realisticamente ineficiente. A necessidade de controle e de punição é uma marca da fraqueza destes regimes.
Karn é um personagem pequeno burguês, de ambições grandes demais para a sua mediocridade. Esse pequeno burocrata é eficiente, mas é essencialmente medíocre. Parar as engrenagens que formaram a Rebelião é muito além do que daria conta, mas nada disso o impede de tentar e com isso entra em contato com Dedra.

Ela pertence à linhagem do oficial da SS que Peter Cushing representou no primeiro filme. Eficiente, dura, racional (certamente deve considerar os Jedis e Siths uma velha religião) e frustrada diante da ineficiência da organização do Império. Se Karn é um tolo que acredita no bem resultante da ordem, Dedra não tem tal ilusão. Mas mesmo ela, com todo seu poder, está aterrorizada pela invasão que Karn promove ao segui-la. Com menos discursos ideológicos, Andor expõe a experiência feminina com mais eloquência do que todas as produções da Marvel.
Mais do que simplificar, mostrando a criação dos sistemas de controle imperiais, a série expõe as engrenagens do universo. Luthen catalisa as ações do Império que, por sua vez, é responsável pelo amadurecimento de Andor. A coincidência é cármica. É a Força que liga todos os seres vivos do universo, mesmo que não tenham sobrenome Skywalker.

Mas Luthen não é um simples anti-herói ou uma leitura barata de Nietzsche. Em uma cena memorável do 10º episódio, ele está sobre um abismo, pronto para fazer um discurso para um espião que decide deixar a causa. Ele não precisa dizer a única frase que todo mundo conhece sobre Nietzsche, pois transcende a leitura barata utilitarista do existencialismo. Luthen procura heróis, não ditadores. Ele quer provocar heróis para agirem, pois até mesmo eles estão agrilhoados pelas coincidências do universo, do destino, da novela. É um diálogo memorável, do nível do monólogo de Rutger Hauer em Blade Runner.
Esse é o grande episódio da série. Quem se lembra da estética geométrica de Guerra nas Estrelas, que a série recaptura, encontra um triângulo perfeito. Um terço do episódio mostra uma cena composta com capricho kubrickiano: Mon Mothma, a outra personagem central da série, precisa de dinheiro para a rebelião e negocia uma forma de lavar dinheiro com um gangster. Sim, em Guerra nas Estrelas (a série também introduziu um bordel para os inocentes fãs).

Apesar de aparecer menos que Andor e Luthen, Mon rouba todas as suas cenas. A sutileza de olhares, a explosão reprimida pelos lábios apertados, os gestos contidos, tudo que Genevieve O’Reilly traz em cena é notável. Durante toda a cena, o corpo aponta para o lado contrário do diálogo. Seu desconforto é enorme. Em seguida, Andor foge de uma prisão que tem a forma de uma porca de parafuso para descobrir que o seu principal aliado (Andy Serkis finalmente dando vida a um personagem e não a um holograma) não é capaz de nadar. E Luthen discursa na beira de um abismo. Todos os três eventos são sobre agir e não agir. A questão existencial básica. Aquela que Yorick não conseguia responder para o príncipe Hamlet.
Andor enriqueceu o universo Star Wars de tal forma que sua existência parece ter sido o verdadeiro objetivo do primeiro filme. Tornou-se fundamental, muito além da cronologia e do conceito de cânon. Porque não faz perguntas que não precisam existir e porque acredita na coincidência, essa força inevitável de toda novela, que une destinos por todo universo sem precisar de malabarismos narrativos e clones descartáveis.

3 comentários em “Depressa com Andor que o santo é de ouro”